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Refletir sobre as consequências do presente e as possibilidades do futuro exige olhar para o passado e compreender sua evolução. Nesse sentido, sempre que surge uma inovação tecnológica descentralizada, é interessante observar o que a história nos revela.
No início da trajetória humana no planeta, existiram diversas espécies de hominídeos — pelo menos dez formas distintas — como Homo habilis, Homo erectus, Homo ergaster, Homo heidelbergensis, Homo neanderthalensis, Homo floresiensis, Homo luzonensis, Homo naledi, Homo denisova, Homo antecessor e, por fim, nós, Homo sapiens sapiens. Em vários momentos, diferentes espécies coexistiram e competiram por território, mas o resultado foi a centralização na espécie que hoje domina: a nossa.
Mesmo os Homo sapiens sapiens começaram de forma descentralizada, vivendo em pequenos grupos nômades de caçadores-coletores. Com o tempo, essas comunidades se transformaram em aldeias, depois em cidades, até atingirem sua maturidade civilizatória nos grandes centros urbanos — uma trajetória clara em direção à centralização. Com sistemas sociais sempre organizados em níveis de poder, na política e na economia, a centralização se mostra como uma tendência estrutural.
No campo da tecnologia, vemos um padrão semelhante. A prensa de Gutenberg, por exemplo, permitiu que qualquer pessoa que tivesse acesso à ferramenta pudesse imprimir e disseminar conhecimento. A internet, em sua origem, também foi descentralizada: qualquer pessoa podia criar um site e compartilhar ideias livremente. No entanto, com o tempo, assistimos à concentração do uso em torno de grandes plataformas como Google, Facebook, TikTok, entre outras. Hoje, dois ou três conglomerados detêm o controle da comunicação na internet. Mesmo com a diversidade de aplicativos de mensagens instantâneas, a maioria dos usuários está concentrada em apenas alguns poucos: WhatsApp, Telegram e Signal.
O Bitcoin surgiu como uma proposta de descentralização financeira. No início, qualquer pessoa com um computador doméstico podia minerar moedas. Contudo, com a evolução da rede, a mineração se tornou concentrada em grandes grupos com poder computacional significativo. A atividade antes distribuída entre indivíduos agora é dominada por poucos.
Mais recentemente, surgiu o protocolo Nostr, uma proposta inovadora com mais de 4.000 servidores descentralizados. No entanto, à medida que a tecnologia amadurece, nota-se uma tendência de concentração de usuários em poucos servidores e aplicativos. A descentralização inicial vai, pouco a pouco, dando lugar à centralização no uso.
Portanto, qualquer tecnologia observada ao longo do tempo tende a seguir esse padrão: começa de forma descentralizada e, gradualmente, migra para a centralização de serviços e produtos. A descentralização, nesse sentido, é comumente o ponto de partida, não o destino final.
Uma das teorias mais reconhecidas que ajuda a compreender esse processo é a Teoria da Evolução de Darwin. Ele demonstrou que a evolução só ocorre em ambientes descentralizados, onde há diversidade e variação. No entanto, também evidenciou que a própria evolução é orientada pela busca da eficiência — uma eficiência que, quase sempre, se manifesta por meio da centralização: seja em torno de uma adaptação mais eficaz, de uma solução dominante ou de um comportamento mais funcional diante de um desafio.
Assim, o processo evolutivo começa descentralizado, mas tende a convergir para um ponto focal — a solução mais eficiente entre as disponíveis. A necessidade evolutiva não é uma escolha consciente, mas uma imposição da própria existência: ou o ser vivo se adapta, ou desaparece. Em outras palavras, a eficiência evolutiva não é opcional — é uma exigência para a continuidade da existência. Como a centralização, ao longo da história, demonstrou ser estruturalmente mais eficiente do que formas puras de descentralização, observamos a predominância de sistemas centralizados.
Quando a descentralização é permanente?
Se Darwin estiver certo — e a evolução for, de fato, um processo contínuo — então a descentralização jamais desaparece por completo: ela está sempre presente, ainda que de forma sutil ou imperceptível. O erro está, muitas vezes, na forma como a descentralização é compreendida. Algumas pessoas a tratam como se fosse um produto ou serviço — algo acabado, com começo, meio e fim. Mas descentralização não é uma entidade isolada: é um ecossistema em transformação constante. Não se adquire descentralização; participa-se dela em direção aos centros de eficiência.
Na prática, a internet ainda permanece descentralizada enquanto ecossistema. O ambiente digital continua sendo aberto: qualquer pessoa pode criar um site, desenvolver um aplicativo ou propor uma nova solução tecnológica. No entanto, aquilo que já se consolidou como a "melhor" solução — seja por eficiência, usabilidade ou marketing — tende a concentrar a atenção da maioria.
É fundamental compreender que a descentralização não se refere a um produto, serviço ou tecnologia específica, mas sim a um ambiente. Trata-se de uma condição estrutural que possibilita a concorrência evolutiva: um espaço onde múltiplas soluções podem emergir, competir e, eventualmente, prevalecer por seus méritos.
Veja o exemplo dos sistemas operacionais: qualquer desenvolvedor ou equipe pode, em teoria, criar um novo sistema. Mas esse sistema só será amplamente adotado se conseguir superar os existentes — como Windows, macOS ou Linux — em algum aspecto significativo. O mesmo vale para qualquer outra solução.
A descentralização cria o campo de jogo, mas não garante a distribuição equilibrada da atenção. A crença na eficiência — ou na percepção de que algo “funciona melhor” — é o que gera a centralização espontânea e confere poder àqueles que conseguem capturar e manter a atenção da maioria.
Um bom exemplo de ecossistema descentralizado é a rede Tor (Onion). Trata-se de uma infraestrutura em que qualquer pessoa com conhecimentos técnicos básicos pode disponibilizar um servidor próprio. Eu mesmo mantenho um servidor de testes em um Raspberry Pi conectado à rede Tor. Essa rede é sustentada por uma comunidade de participantes voluntários, distribuída globalmente.
No entanto, a rede Tor não é mais eficiente do que a internet convencional quando se trata de acessar informações públicas e livremente disponíveis. Sua proposta é resolver um problema muito específico: garantir anonimato e resistência à censura, sobretudo em contextos de opressão estatal. Assim, a rede Tor não compete diretamente com a internet aberta; ela atende a uma demanda particular dentro de um ecossistema paralelo.
Outro exemplo é o Nostr, um protocolo descentralizado que, assim como a rede Tor, funciona como ambiente livre para a experimentação e inovação. Ele permite que qualquer desenvolvedor crie suas próprias aplicações sociais e de comunicação. Contudo, à medida que algumas soluções se mostram mais eficientes ou atraentes, ocorre novamente um fenômeno de concentração espontânea — como vemos com determinados relays que acabam ganhando mais tráfego e reconhecimento dentro do ecossistema.
Em ambos os casos, vemos que a descentralização cria o campo fértil para a diversidade de soluções, mas a preferência coletiva tende a se concentrar naquilo que se mostra mais funcional, estável ou atrativo. A descentralização, portanto, não impede a centralização de fato — apenas garante que ela seja, ao menos em teoria, sempre desafiável.
Essa é a expressão mais clara da teoria da evolução darwiniana aplicada aos sistemas sociais e tecnológicos: uma existência evolui quando é desafiada — quando precisa buscar melhorias e se adaptar às mudanças do ambiente. Dentro de qualquer ecossistema, todos os participantes, em algum momento, enfrentarão pressões externas, limitações internas ou mudanças nas preferências dos usuários.
Plataformas como WhatsApp, Facebook e Google, por mais consolidadas que estejam, também estão sujeitas a instabilidades, frustrações do usuário e perda de relevância. Quando isso acontece, elas precisam se reinventar para sobreviver — ou correm o risco de serem superadas por soluções mais eficientes ou mais sintonizadas com os desejos do público.
Esse ciclo é natural em ambientes evolutivos: as soluções dominantes de hoje só continuarão no topo se forem capazes de se adaptar às novas exigências. Caso contrário, a atenção — e, com ela, o poder — será transferida para aquelas alternativas que melhor respondem aos desafios do momento.
Nesse contexto, é fundamental compreender que a descentralização não é um produto, um serviço ou uma ação isolada — é um ecossistema. E, como tal, não é algo que começa e termina, mas uma condição estrutural contínua. Por isso, sistemas descentralizados são, em essência, permanentes, ainda que sua expressão prática oscile ao longo do tempo.
A maturidade desses ecossistemas costuma passar por fases: no início, há uma descentralização quase total, marcada pela experimentação e pela diversidade de soluções. Com o tempo, à medida que algumas se consolidam por sua eficiência ou popularidade, ocorre uma descentralização parcial — onde a liberdade permanece, mas o uso se concentra em torno de certos núcleos funcionais. Ainda assim, o potencial descentralizado continua latente, sempre pronto para gerar novas alternativas diante de crises, falhas ou inovações.
Descentralização e percepção de valor
Quando defensores das redes descentralizadas — como usuários do Nostr, Session, SimpleX ou da rede Tor — convidam pessoas leigas para esses ambientes, costumam recorrer a argumentos como autonomia, segurança e liberdade. Embora legítimos, esses valores só fazem sentido para o usuário comum quando acompanhados de eficiência prática: facilidade de uso, estética agradável e boa velocidade de resposta.
Autonomia, segurança e liberdade são conceitos subjetivos, que exigem um certo grau de conhecimento técnico para serem plenamente compreendidos ou valorizados. Já os usuários convencionais, que não estudam tecnologia com profundidade, tendem a avaliar uma solução com base em aspectos mais acessíveis: o cuidado estético da interface, a fluidez da experiência, a simplicidade do uso e o desempenho perceptível.
Em última análise, a liberdade proporcionada por uma tecnologia é proporcional ao nível de conhecimento técnico do usuário. O mesmo vale para a autonomia e para a percepção de segurança. Para profissionais técnicos, essas qualidades são evidentes. Para o público leigo, são quase invisíveis.
Por isso, facilidade de uso, intuitividade, aparência e desempenho são atributos autoevidentes — e é por meio deles que usuários comuns medem a qualidade de uma rede, produto ou solução.
Convidar usuários leigos para um ecossistema descentralizado que ainda não oferece soluções com boa estética, desempenho ágil e uso intuitivo tende a gerar frustração e abandono.
Enquanto os participantes com perfil técnico geralmente encontram satisfação em colaborar com o desenvolvimento e amadurecimento dessas redes, o usuário leigo quer simplesmente utilizar a tecnologia — aproveitar sua eficiência, e não fazer parte do processo de construção.
Nesse contexto, tecnologias em estágio inicial tendem a atrair um público muito específico: em geral, não se trata de usuários comuns, mas de entusiastas da tecnologia — pessoas motivadas justamente pela oportunidade de participar do nascimento e da evolução de algo novo. Esse é o caso do protocolo Nostr, entre outras inovações emergentes.
O mesmo fenômeno ocorre até com tecnologias mais maduras, mas que se consolidaram dentro de nichos técnicos, como a rede Tor ou o sistema operacional Linux. Apesar da estabilidade e robustez, essas soluções ainda exigem familiaridade técnica, o que naturalmente limita seu alcance ao grande público.
Antes de convidar alguém para experimentar uma determinada tecnologia, é essencial compreender, de forma específica, o que ela realmente resolve ou facilita no cotidiano dessa pessoa. Se, na percepção prática do usuário leigo, a tecnologia impuser mais dificuldades do que benefícios, dificilmente despertará interesse ou terá algum atrativo concreto.
Nesses casos — quando se trata de uma tecnologia ainda em fase inicial ou não plenamente madura — a melhor estratégia pode ser contribuir com o desenvolvimento da comunidade, seja por meio de código, testes ou produção de materiais de esclarecimento. Paralelamente, é mais eficaz direcionar os convites a perfis técnicos ou entusiastas, que valorizam o processo de construção e evolução da tecnologia tanto quanto seus resultados práticos.
Em uma tecnologia madura, que oferece bom desempenho percebido pelo grande público, o crescimento orgânico tende a ser rápido, natural e consistente.
Uma possível resposta sobre descentralização
A descentralização não tem vida curta. O que ocorre, historicamente, é que ela serve como ponto de partida para ciclos de inovação e adaptação — ambientes onde múltiplas soluções emergem e competem. A centralização, por sua vez, é a consequência natural da busca por eficiência dentro desses ecossistemas. Ambas são faces interdependentes de um mesmo processo evolutivo.
Em termos darwinianos:
Descentralização é ecossistema — o ambiente fértil onde a inovação nasce.
Centralização é consequência — a eficiência colocada em prática.
Ambas coexistem — e uma desafia constantemente a outra.
Portanto, a descentralização não morre. Ela é o ambiente que muda de forma, se reposiciona e ressurge — como sempre fez. Frequentemente impulsionando novas centralizações em torno das soluções mais eficientes.
Jeferson Silva - PU3OSI