Há algo profundamente irônico neste momento da nossa história. Enquanto milhões debatem se o ChatGPT tem consciência, se o Dogecoin vai chegar a um dólar, ou se os vídeos do Pentágono confirmam a existência de OVNIs, continuamos sendo a única espécie neste planeta que paga pelo direito de existir. Um pássaro habita livremente seu ninho, um leão dedica apenas algumas horas para caçar e se alimentar. Só nós, os supostamente mais inteligentes, criamos um sistema onde nascer implica uma dívida vitalícia com o espaço que habitamos. O ser humano médio trabalhará 90.000 horas em sua vida —mais de 10 anos contínuos— apenas para pagar por um teto que nenhuma outra criatura compra. E aqui está o fascinante: temos em nossas mãos as ferramentas para acabar com essa anomalia evolutiva, mas as estamos usando como brinquedos.
Observemos o padrão. Em 2020, justamente quando o mundo parou e tivemos a oportunidade de repensar tudo, o que fizemos? Nos lançamos de cabeça no cassino cripto. Bitcoin, Ethereum, "to the moon" tornou-se o grito de guerra. A tecnologia blockchain é revolucionária —poderia nos libertar—, mas a usamos principalmente para especular.
Depois veio o crash, o "inverno cripto", e justamente quando poderíamos ter refletido sobre o que deu errado, apareceu uma nova atração: as memecoins. Pepe, Shiba, tokens cuja única utilidade era ensinar a toda uma geração que tudo pode ser objeto de especulação. Uma domesticação perfeita para preparar mentes que verão como normal apostar com qualquer coisa: seus dados, sua atenção, seu tempo, sua vida. E agora, em 2024-2025, o novo brinquedo é a inteligência artificial. Milhares de horas dedicadas a gerar imagens —entendendo que há uma etapa natural de experimentação, mas ficar produzindo conteúdo sem propósito é desperdiçar o potencial transformador dessas ferramentas—, a perguntar ao ChatGPT coisas triviais, a debater se a iA vai nos tirar o trabalho —quando esse deveria ser precisamente o objetivo. Temos em nossas mãos a tecnologia que poderia libertar 3,4 bilhões de trabalhadores globais da necessidade de vender 40+ horas semanais para sobreviver, e a usamos para criar namoradas virtuais e escrever e-mails passivo-agressivos. É como descobrir a cura do câncer e usá-la para fazer cremes antirrugas. Ou pior ainda: ter a cura e mantê-la guardada porque os doentes crônicos são mais lucrativos que os saudáveis. Um povo esgotado, ansioso e medicado é um povo dócil.
Não é conspiração, é um padrão observável. Toda vez que o sistema econômico tradicional cambaleia, aparece uma nova fascinação tecnológica que absorve nossa atenção coletiva. Coincidência? Talvez. Conveniente? Definitivamente. Pensemos nisso: o sistema bancário atual é construído sobre areia. Dívida sobre dívida, dinheiro criado do nada, bolhas que explodem a cada década levando as economias de milhões, enquanto os arquitetos do colapso recebem resgates. Oito pessoas possuem o mesmo que 3,6 bilhões. Não é um erro de cálculo — é o sistema funcionando exatamente como foi projetado. É um castelo de cartas que precisa de um reset (reinício), mas um reinício controlado onde os mesmos jogadores mantenham o poder. E enquanto o castelo treme, nos entretêm com luzes coloridas. E que melhor maneira de fazer isso do que nos manter entretidos com as possibilidades infinitas do futuro enquanto redesenham as correntes do presente? A inteligência artificial poderia estar automatizando a burocracia que mantém a escassez artificial. O blockchain poderia estar criando sistemas financeiros sem intermediários parasitas. Mas, em vez disso, debatemos se os NFTs de macacos valem milhões ou se o GPT-5 poderá escrever romances. É como se tivessem nos dado as chaves da cela e as usássemos para fazer malabarismos.
Há uma explicação mais profunda para este padrão de distração perpétua: como espécie, estamos nos comportando como adolescentes com a tecnologia. A adolescência se caracteriza pela busca frenética de identidade, a necessidade de aprovação imediata, a atração pelo risco sem medir consequências e, sobretudo, a ilusão de que somos únicos e invencíveis enquanto seguimos cegamente a manada.
Observemos nossos comportamentos digitais: criamos múltiplos avatares buscando quem somos realmente. Perseguimos likes e validação como se fossem oxigênio. Apostamos fortunas em memecoins com a mesma imprudência com que um adolescente aceita um desafio perigoso. Compartilhamos cada detalhe íntimo de nossas vidas sem pensar nas consequências futuras. A pornificação da intimidade atinge seu ápice com plataformas como OnlyFans, onde vender o corpo se normalizou como "empreendimento digital". Milhares de jovens descobrem tarde demais que a internet nunca esquece, que o que parece libertação financeira hoje pode ser uma prisão reputacional amanhã. Marshall McLuhan o antecipou com seu conceito de "Narcissus narcosis": como Narciso olhando seu reflexo, estamos tão fascinados com nossas extensões tecnológicas que não reconhecemos que estamos olhando para nós mesmos. E como todo adolescente diante do espelho, confundimos a imagem com a identidade.
Essa imaturidade coletiva tem seus beneficiários. Um adolescente é o consumidor perfeito: impulsivo, inseguro, desesperado para pertencer, viciado em novidades. As grandes corporações tecnológicas desenham suas plataformas para perpetuar esse estado: notificações que exigem atenção imediata, métricas de vaidade que alimentam a insegurança, algoritmos que premiam o drama e o conflito. O documentário "The Social Dilemma" da Netflix expôs essas técnicas de manipulação: ex-funcionários do Vale do Silício confessando como construíram máquinas de vício disfarçadas de redes sociais. A ironia de precisar da Netflix para entender como a Netflix e outras plataformas nos mantêm engajados não escapa a ninguém.
Mas aqui está o crucial: toda adolescência deve terminar. A maturidade tecnológica implica usar as ferramentas com propósito claro. Implica construir sistemas sustentáveis. Implica pensar nas próximas gerações. Diferente da adolescência biológica, a tecnológica não tem um final programado. Podemos ficar presos nela indefinidamente, como aqueles personagens trágicos que nunca superam a escola.
Madurar significa perder a ingenuidade sem perder a capacidade de sonhar. É entender, como documenta Karen Hao em "Empire of AI", que o ChatGPT e outras tecnologias se comportam como entidades imperialistas, extraindo nossos dados e conhecimentos para concentrar poder em poucas mãos. A fase adulta tecnológica exige fazer melhores perguntas: Quem controla essas ferramentas? A que interesses servem? O que estamos entregando em troca de conveniência?
Nesta era, a ignorância é uma escolha. Temos acesso a mais informação que qualquer geração anterior, mas preferimos consumir entretenimento infinito. A responsabilidade de se educar, de entender as ferramentas que usamos diariamente, já não é opcional. É tão fundamental quanto aprender a ler. Porque enquanto brincamos de ser rebeldes compartilhando memes contra o sistema, esse mesmo sistema redesenha as correntes que nem sequer vemos.
A crise climática, a desigualdade extrema, a precarização laboral: esses desafios requerem adultos tecnológicos. Adultos que mantenham viva a capacidade de imaginar outros futuros, mas com a disciplina para construí-los. Que entendam que entre o sonho e a realidade está o trabalho consciente, a organização coletiva, o uso estratégico das mesmas ferramentas que hoje nos distraem.
É hora de crescer. A tecnologia em mãos maduras pode resolver os problemas que a tecnologia em mãos adolescentes ajudou a criar.
Paremos por um momento. Em toda a natureza, habitar é um direito inerente à existência. Uma árvore não paga aluguel à floresta. Uma manada não trabalha para um leão que lhes "aluga" a savana. Somente o ser humano criou essa perversão em que o simples ato de ocupar espaço exige submeter-se a um sistema de trabalho forçado.
"É que é assim que a sociedade funciona", dirão alguns. Mas e se essa sociedade estiver mal projetada? E se tivermos confundido civilização com submissão econômica?
O trabalho, em sua forma atual, não é natural. É uma construção relativamente recente em nossa história evolutiva. Durante centenas de milhares de anos, trabalhamos para viver diretamente: caçávamos para comer, construíamos para nos abrigar. Agora trabalhamos para pagar a outros o direito de fazer essas mesmas coisas básicas. Inserimos intermediários monetários em cada aspecto da sobrevivência.
E justamente quando a tecnologia poderia nos libertar dessa intermediação forçada, a usamos para criar novas formas de especulação e distração.
Imagine por um momento que levamos essas ferramentas a sério. Como o que realmente são: as chaves da nossa libertação econômica.
O blockchain nos oferece algo sem precedentes na história humana: um sistema financeiro autônomo. Um sistema onde a matemática garante a transparência, onde cada transação é verificável, onde o poder se distribui entre todos os participantes. É um sistema "trustless" —sem necessidade de confiança— porque a confiança está integrada no próprio código.
A inteligência artificial, por sua vez, está chegando ao ponto em que pode realizar melhor, mais rápido e mais barato quase qualquer trabalho que gere valor econômico. Desde escrever código até diagnosticar doenças, desde projetar edifícios até gerenciar cadeias de suprimentos. E aqui vem a pergunta transformadora: quando as máquinas podem fazer o trabalho, por que continuamos forçando os humanos a competir com elas por um salário?
A convergência dessas duas tecnologias poderia criar algo revolucionário: um sistema onde a riqueza gerada pela automatização flua automaticamente através de contratos inteligentes. Onde o trabalho humano seja criativo, voluntário, apaixonado.Onde trabalhemos por curiosidade, arte ou serviço, libertados da sobrevivência.
Mas isso requer algo mais que tecnologia. Requer que reimaginemos o contrato social do zero.
Precisamos nos perguntar: O que devemos a um ser humano pelo simples fato de existir? Se aceitamos que todo ser vivo habita livremente o planeta, por que normalizamos que os humanos paguem por esse direito?
Imagine acordar cada manhã sabendo que sua existência está garantida, que um sistema baseado em blockchain distribui automaticamente os dividendos da produtividade coletiva. Não seria mais caridade estatal nem dependência governamental, mas sua participação matematicamente assegurada na abundância que as máquinas geram. Os recursos fluiriam segundo a necessidade real e a abundância disponível, não segundo sua capacidade de pagamento ou sua disposição de se submeter.
Nesse novo paradigma, a escassez artificial que mantém os preços altos e as pessoas acorrentadas a empregos sem sentido simplesmente evaporaria. Como quando a internet destruiu a escassez artificial da informação, blockchain e iA poderiam destruir a escassez artificial dos recursos básicos.
O trabalho humano experimentaria uma metamorfose completa.Libertados da competição com máquinas em tarefas que elas fazem melhor, poderíamos retornar ao que nos torna únicos: a capacidade de criar sem agenda, de cuidar sem relógio, de contemplar sem culpa, de conectar sem transação. Imagine uma geração que conhece o trabalho como expressão criativa, como contribuição voluntária, como jogo produtivo —porque quando as necessidades básicas estão cobertas, o trabalho se transforma em arte.
O pesquisador independente David Shapiro desenvolveu um arcabouço teórico chamado "Post-Labor Economics" (Economia Pós-Trabalho) que aborda precisamente esses desafios. Seu trabalho é fundamental para entender por que a renda básica universal, embora necessária, não é suficiente.
Shapiro identifica o que ele chama de "paradoxo da agência econômica": quando as máquinas são melhores, mais rápidas, mais baratas e mais seguras que os humanos em praticamente tudo, a automatização se torna inevitável. Mas isso cria um círculo vicioso: sem empregos, não há renda; sem renda, não há consumo; sem consumo, até mesmo a economia automatizada mais eficiente entra em colapso.
Sua proposta vai além da Renda Básica Universal (RBU) tradicional. "As soluções tradicionais como a renda básica universal fornecem subsistência básica, mas falham em abordar a necessidade fundamental de participação econômica genuína", argumenta Shapiro. O desafio é de agência —a capacidade de tomar decisões econômicas significativas.
A solução que ele propõe é transformadora: converter todos de trabalhadores para investidores. Através do que ele chama de "tokenização universal de ativos", tudo —desde negócios locais até centros de dados de iA— se tornaria investível por meio de tokens digitais padronizados. As pessoas manteriam sua agência econômica direcionando recursos, criando valor através de suas decisões de investimento.
Shapiro também adverte sobre o perigo da dependência total: "Quando você se torna 100% dependente do governo, eles têm todo o poder". Por isso, sua visão inclui formas descentralizadas de propriedade: cooperativas, fundos comunitários, participação direta na infraestrutura automatizada que gera a riqueza.
É uma visão que reconhece que o desafio é de imaginação e vontade política —já temos as ferramentas. Enquanto debatemos se a iA é consciente, deveríamos estar projetando sistemas onde a consciência humana possa florescer, liberada da coação do trabalho forçado.
Para aprofundar nessas ideias, recomendo ler os ensaios de David Shapiro: "A Post-Labor Economics Manifesto" y "What do I mean when I say 'Post-Labor Economics' anyways?" em seu Substack.
Mas aqui vem o maior desafio. É psicológico, mais do que tecnológico ou econômico. Gerações inteiras foram condicionadas a equiparar seu valor à sua produtividade. "No que você trabalha?" é a segunda pergunta em qualquer conversa. A pergunta real é: quem somos quando o trabalho deixa de nos definir?
E há algo mais profundo: nossos sistemas nervosos estão entrando em colapso sob o peso da hiperestimulação constante.A epidemia global de ansiedade, depressão e burnout é o resultado direto de um sistema que nos mantém em estado de alerta perpétuo: notificações, prazos de entrega, métricas de produtividade, a pressão constante para "otimizar" cada momento. A OMS relata que os transtornos de ansiedade aumentaram 25% globalmente desde 2020. Um em cada oito humanos vive com algum transtorno mental. Em países "desenvolvidos", 75% dos trabalhadores relatam sintomas de burnout.
Minha própria história confirma isso: seis anos trabalhando na Red Bull. Cinco deles no Brasil. Mais de cinco latas diárias correndo nas minhas veias, dormindo cinco horas, respondendo e-mails entre 1h e 3h da manhã. O corpo aguenta até não aguentar mais. Depois do colapso inevitável, a reconstrução: quatro anos para recuperar o equilíbrio do sistema nervoso, para lembrar como andar sem pressa, para sair do poço profundo da depressão. Minha história é compartilhada por milhões. A diferença é que eu pude parar. Quantos continuam nessa roda porque parar significa perder o teto?
As mesmas tecnologias que poderiam nos libertar, nós as transformamos em chicotes digitais. O smartphone que poderia ser uma janela para todo o conhecimento humano é, em vez disso, uma coleira eletrônica que nos mantém disponíveis 24/7 para o trabalho, o consumo e a distração.
A ironia é brutal: nunca tivemos mais ferramentas para o descanso e a contemplação, mas nunca estivemos mais esgotados. A meditação virou um app com métricas de desempenho. O descanso virou "produtividade tóxica" —descanse para render mais amanhã.
Imagine, em vez disso, um mundo onde o descanso seja um direito fundamental. Onde a contemplação seja a atividade humana por excelência. Os místicos de todas as tradições sabiam: no silêncio e na quietude encontramos paz, criatividade genuína, insight, conexão.
A transição para uma economia pós-trabalho implica redistribuir a riqueza, e também o tempo, a atenção, a paz mental. É reconhecer que um sistema nervoso em calma é o pré-requisito para qualquer atividade verdadeiramente humana.
O caminho está cheio de obstáculos mentais que internalizamos como verdades absolutas.
Meu avô teve uma recapagem de pneus. Meu pai a transformou em uma empresa de reciclagem de borracha. Meus irmãos mais velhos tomaram rumos opostos: um seguiu a lógica empresarial estudando Economia, o outro escolheu os pincéis e a vida boêmia. Foi este último quem me mostrou que existiam outras formas de habitar o mundo. Observar sua luta diária —a honestidade que o processo criativo exige, o choque constante com um sistema que tem a mania da especulação e de converter tudo em mercadoria— me ensinou a olhar de outro ângulo. Essa tensão entre a fábrica familiar e o ateliê de arte foi minha escola real: aprendi que as perguntas mais importantes não vêm dos manuais de produção, mas da contemplação, do questionamento, da arte de imaginar outros futuros possíveis. Por isso, quando chegou a minha vez,busquei um território híbrido: estudei engenharia de som, aprendi a programar, e quando descobri a internet soube que havia encontrado esse espaço onde a imaginação e a técnica podiam conspirar juntas. Levo três décadas habitando esta dimensão digital, colecionando aventuras que teriam sido impossíveis na recapagem do avô ou na tela do irmão. Essa evolução abriu um abismo geracional: enquanto meu pai vê números e produção, eu vejo redes e possibilidades. Três gerações sob o mesmo teto, três formas radicalmente distintas de entender o que significa trabalhar, criar, viver.
"O trabalho dignifica", repetem como mantra aqueles que se beneficiam do seu suor. Mas a dignidade humana é inerente,nasce com você, não se ganha em uma fábrica nem se compra com um salário. Você foi digno desde o seu primeiro suspiro e o será até o último, independentemente da sua "produtividade".
Venderam-nos que "só com esforço há recompensa", convertendo o sofrimento em virtude e o descanso em pecado. Desde quando a dor se tornou moeda de troca para merecer paz? Essa lógica perversa nos convenceu de que só depois de nos esgotarmos merecemos um momento de respiro, como se a contemplação fosse um luxo que precisa ser conquistado com sangue.
"Os vagabundos destruirão a sociedade", gritam os mesmos que temem perder mão de obra barata. Mas a evidência conta outra história: quando as pessoas têm suas necessidades básicas cobertas, elas florescem. Criam arte, cuidam de jardins, ensinam crianças,inventam soluções, constroem comunidade. A "vagabundagem" que tanto temem é, na realidade, o espaço onde nasce a inovação.
E o mais insidioso de todos: "Sempre foi assim". Mentira. Os antropólogos que estudam sociedades caçadoras-coletoras —como vivemos durante quase 200.000 anos antes da agricultura— documentam jornadas de 15 a 20 horas semanais dedicadas a obter sustento. Os Nukak da Amazônia colombiana são caçadores-coletoras nômades que, segundo a Wikipédia e o Plano Especial de Salvaguarda de Urgência Nükak do Ministério da Cultura (2012), praticam uma "economia baseada na coleta de espécies vegetais silvestres e de insetos, bem como pela caça, pesca e horticultura em pequena escala", com alta mobilidade territorial, mudando de acampamento a cada poucas semanas. Os Tikuna do Alto Amazonas, entre Colômbia, Brasil e Peru, organizavam tradicionalmente seu trabalho em torno dos ciclos naturais, como documentam fontes do Ministério da Cultura do Peru e da ONIC (Organização Nacional Indígena da Colômbia). O resto do tempo nessas sociedades: tecer histórias, criar arte, fortalecer laços comunitários.
Mesmo na era feudal, com todos os seus abusos, os servos trabalhavam seguindo ritmos naturais: intensamente no plantio e na colheita, mas com longos períodos de descanso. A Igreja estabelecia mais de 100 dias festivos por ano. Os artesãos trabalhavam por projeto, não por relógio. Sim, havia opressão, mas era visível: o senhor feudal tinha nome e castelo, você entregava parte da sua colheita,sabia exatamente quem o explorava.
A jornada de 8+ horas é uma invenção da Revolução Industrial, quando os reis do capital aprenderam a se esconder. Não há mais um senhor feudal para identificar —agora você trabalha para "o mercado",para acionistas sem rosto, para fundos de investimento com nomes de letras. A extração da sua energia vital se disfarça de salário, a servidão se vende como liberdade de escolher entre senhores. É o mesmo sistema de dominação, só que mais sofisticado: em vez de tirar uma parte da colheita, tiram a vida inteira em cotas de 8 horas, e ainda fazem você se sentir agradecido por ter "emprego".
Romper esses padrões requer mais do que mudanças econômicas. Requer uma revolução cultural que valorize o ser sobre o fazer, a contemplação sobre a produtividade, a conexão sobre a competição. Requer lembrar quem éramos antes que nos convencessem de que nascemos para pagar aluguel.
Ironicamente, enquanto uso iA para escrever sobre o mau uso da iA, milhões estão debatendo se o Claude ou o ChatGPT é mais inteligente. Outros especulam com a próxima memecoin que os fará ricos. A mídia nos bombardeia com histórias de OVNIs para que esqueçamos que ninguém foi para a prisão pelas mentiras do confinamento que destruíram milhões de vidas e negócios. Enquanto isso, os bancos centrais projetam suas moedas digitais para ter controle absoluto sobre cada transação.
Você vê o padrão? Cada nova "revolução" tecnológica nos promete libertação, mas entrega mais controle aos mesmos poderes. As criptomoedas iriam democratizar as finanças; se converteram em cassinos. A iA iria nos libertar do trabalho tedioso; nós a usamos para gerar mais conteúdo lixo.
As indústrias do cassino de dopamina digital têm números que revelam seu verdadeiro impacto. A indústria global de jogos online atingiu US$ 78,66 bilhões em 2024 e projeta-se que chegará a US$ 153,57 bilhões até 2030, segundo a Grand View Research. A pornografia digital gera mais de US$ 97 bilhões anualmente —mais do que Netflix, Amazon e X (Twitter) combinados.
Quanto à exposição publicitária, embora o consumo de mídia tenha crescido de 5,2 horas em 1945 para 9,8 horas diárias atualmente, estudos sérios estimam que recebemos cerca de 360 anúncios por dia, dos quais só notamos 150-155 (SJ Insights). Os números de "5.000 a 10.000 anúncios diários" que circulam na internet são mitos urbanos sem base científica (The Drum).
O resultado dessa hiperestimulação constante: taxas de ansiedade que triplicaram em uma geração. O produto somos nós, especificamente nossa atenção fragmentada e nossos sistemas nervosos esgotados.
O sistema financeiro global está em seus últimos dias. Não é conspiração, é matemática: dívida infinita em um planeta finito. Os que comandam esse circo sabem disso. Por isso a urgência de nos distrair, de nos manter fascinados com o futuro enquanto redesenham o presente a seu favor.
Mas há uma janela de oportunidade. Justo agora, enquanto todos olham para cima procurando discos voadores ou para suas telas gerando imagens sem propósito particular, alguns já estão construindo a infraestrutura da nossa libertação.Projetos de finanças descentralizadas, cooperativas digitais, redes de energia distribuída, sistemas de governança autônoma.
Levo três décadas explorando essas fronteiras. Entre 2006 e 2012, com La Cápsula, experimentávamos como equipe com a Rádio Cápsula, uma emissora online que democratizava a difusão de conteúdo, promovendo que os cidadãos da rede passassem de consumidores passivos a criadores ativos. Hoje, como criador independente, publico minhas reflexões em paragraph.com onde cada ensaio pode ser colecionado como NFT —99 edições que permitem apoiar diretamente este trabalho de investigação. Na Zora, ativei os tokens $lacapsula e $datalove como laboratórios vivos onde aprender juntos a navegar essas novas economias.
Plataformas como a Zora estão experimentando com economias de criadores onde cada artista pode lançar sua própria moeda. Já não é teoria: os criadores podem monetizar diretamente seu trabalho, construir microeconomias em torno de sua arte, converter seus seguidores em coproprietários. É a visão de Shapiro se tornando realidade —de consumidores passivos a investidores ativos no trabalho criativo que valorizamos.
Em El Salvador está ocorrendo um experimento fascinante. Povos inteiros adotaram Bitcoin como moeda de curso legal. Avós que jamais pisaram em um banco agora recebem remessas instantâneas do exterior. Sim, Bukele tem suas críticas e o processo tem suas falhas. Mas enquanto os especialistas debatem, milhares de salvadorenhos já vivem uma realidade diferente: transações sem intermediários bancários, sem comissões de 20%, sem esperar dias. Tiveram a sorte de um governo que, com todos os seus defeitos, lhes mostrou uma porta. O crucial é que agora eles têm a chave.
A tecnologia libertadora existe e cresce a cada dia. O desafio é que as massas, hipnotizadas pelo cassino de dopamina digital, a ignoram ou chegam tarde para adotá-la. Estamos desfocados, e essa distração tem arquitetos.
Podemos começar agora mesmo. Cada vez que escolhemos aprender sobre finanças descentralizadas em vez de especular com memecoins, ganhamos. Cada vez que usamos a iA para automatizar trabalho real em vez de gerar entretenimento vazio, avançamos. Cada vez que apoiamos um criador comprando seu token em vez de dar um like vazio, transformamos a economia da atenção em economia da intenção. Cada vez que construímos redes de apoio mútuo em vez de competir por migalhas, nos fortalecemos.
A pergunta é se a tecnologia nos libertará. A pergunta é se despertaremos a tempo para usá-la com esse propósito.
Imagine seus filhos ou os filhos de seus filhos vivendo em um mundo onde trabalhar é uma expressão de criatividade e paixão.Onde a contemplação e a conexão humana são a norma. Onde cada ser humano habita livremente o único planeta que temos.
Esse mundo é possível. As ferramentas estão aqui. O conhecimento existe. Só falta que tomemos os instrumentos de construção e comecemos a edificar o futuro que merecemos.
Enquanto nos entretemos com as maravilhas do amanhã,recordemos a urgência do hoje. Porque se esperarmos que outros projetem o novo sistema por nós, viveremos na visão deles, sob os termos deles.
O relógio corre. A janela se fecha.
É hora de despertar. É hora de construir.
É hora de reclamar nosso direito mais básico: habitar este planeta como seres livres, como criadores do nosso destino.
Agora mesmo, depois de ler isso, feche todas as abas. Desative as notificações. Sente-se 10 minutos em silêncio. Depois, abra apenas uma aba e procure por "o que é DeFi" ou "cooperativas digitais" —de DAOs a cooperativas de plataforma como Fairbnb, Mensakas ou Subvert.fm.
A revolução é tecida por meio de cliques que ativam nossa curiosidade.
Um passo.
Hoje.
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