No início da evolução humana, um evento sísmico mudou tudo. O fogo — seu calor, luz e capacidade de transformação — alterou não apenas o que podíamos fazer, mas quem éramos. À medida que nômades errantes se estabeleceram, à medida que caçadores se tornaram agricultores, o
Agora, estamos à beira de um momento semelhante. A iA não é uma nova ferramenta; é uma força cultural que remodelará nossas vidas em torno do trabalho, da arte e de nossos relacionamentos. Mas a maioria das organizações vê a iA simplesmente como a próxima atualização digital — um pensamento que subestima drasticamente seu impacto revolucionário.
Quando nossos ancestrais dominaram o fogo, não apenas adquiriram uma ferramenta; eles iniciaram uma revolução cultural. O nomadismo deu lugar ao assentamento. A agricultura floresceu (note que a palavra "cultura" vive dentro dela). Assentamentos se transformaram em aldeias, aldeias em cidades, cidades em civilizações. O fogo alterou nossas capacidades e redefiniu nossa identidade coletiva.
A inteligência artificial acende uma transformação igualmente profunda. Como o fogo que estendeu nossas noites e criou espaços de reunião e ritual, a iA amplifica nosso alcance cognitivo e catalisa novas formas de colaboração humana. A verdadeira questão transcende a eficiência:
Muitos projetam futuros distópicos onde as máquinas se rebelam contra seus criadores. Essa narrativa de medo perde o sentido quando contemplamos nossa relação com outras inteligências superiores que já nos cercam. A Terra — Pachamama — representa uma inteligência viva infinitamente mais complexa que a nossa, e ainda assim prosperamos dentro de seus sistemas. Os reinos animal e vegetal encarnam inteligências coletivas que superam as nossas em inúmeras dimensões, e ainda assim coexistimos em interdependência (embora frequentemente desequilibrada).
O verdadeiro desafio não reside na inteligência artificial em si, mas em nossa capacidade de adaptar nossas culturas ao ritmo de transformação que ela catalisa. O risco fundamental está em quem controla essas tecnologias e que visões elas amplificam:
O fogo pode iluminar comunidades inteiras ou queimar tudo em seu caminho. A diferença está em como cultivamos e compartilhamos seu poder transformador.
Notei algo inquietante em minhas três décadas como empresário, funcionário, observador e filósofo empírico: à medida que envelhecemos, nossa relação com o novo conhecimento se ossifica. O aprendizado — especialmente o aprendizado transformador que desafia visões de mundo fixas — torna-se domínio dos poucos curiosos ou daqueles que podem se dar ao luxo de persegui-lo.
Essa resistência gera uma cultura inerentemente desconfiada de paradigmas emergentes de conhecimento. Quando novas tecnologias surgem, a sociedade prioriza o domínio técnico em detrimento da compreensão cultural. O ciclo se manifestou em cada evolução da internet: a web estática, as plataformas sociais e agora os espaços descentralizados. Em cada fase, a expertise técnica e as oportunidades comerciais imediatas capturam a atenção coletiva, relegando a um segundo plano a exploração dos significados culturais mais profundos que transformariam verdadeiramente nossa relação com essas tecnologias.
Para as organizações, isso representa uma perigosa miopia. Alguns líderes se perguntam: "Como usamos a iA para otimizar nossos processos existentes?". Em vez de perguntas mais essenciais, como:
Na vida moderna, o trabalho é o centro de nossa existência. É onde passamos a maior parte de nossas horas acordados, formamos nossos relacionamentos mais importantes e, muitas vezes, nos definimos. Sempre pensei no trabalho como algo profundamente espiritual — não em um sentido religioso, mas como o principal palco para o desenvolvimento e a contribuição humana.
Nossos lares se tornaram cada vez mais lugares de mero descanso e recuperação entre os intervalos de trabalho. Nossos "terceiros espaços" de convivência pública diminuíram. O trabalho, portanto, carregou o fardo injusto de satisfazer nossas necessidades de significado, crescimento e pertencimento.
A maior promessa da iA não reside na eficiência operacional, mas na transformação fundamental de nossa atividade criativa. Ao automatizar os aspectos rotineiros do conhecimento, a iA libera espaço para que qualidades exclusivamente humanas floresçam: criatividade profunda, empatia genuína e sabedoria contextual. Ela não substitui nossa essência; ela amplifica precisamente aquilo que trazemos de forma única.
A era industrial idealizou líderes como comandantes dominantes que sabiam tudo. A era da informação os idolatrava como conectores e facilitadores. A era da iA exige algo completamente diferente: líderes que catalisem a transformação cultural enquanto abraçam sua própria evolução contínua.
A maioria dos líderes organizacionais atuais é produto dos paradigmas dessas eras. Seus modelos mentais foram formados em épocas onde a escassez de informação e o controle hierárquico constituíam pilares fundamentais da gestão. A iA rompe radicalmente com essas premissas ao liberar o acesso a uma nova camada de conhecimento e potencial criativo.
Com essas tecnologias, cada indivíduo pode emergir como agente de transformação cultural. As barreiras artificiais que antes limitavam o impacto criativo — acesso a conhecimento especializado, tecnologia de produção cara, canais de distribuição dominados por guardiões — estão desmoronando. Estamos no meio de uma revolução cultural acelerada por uma mudança de paradigma tecnológico.
Antes de guiar outros em um processo de transformação, os líderes devem atravessar o seu próprio. O desafio vai além de aprender novas interfaces de software; implica adotar formas completamente novas de se relacionar com a tecnologia e com o potencial humano que ela desbloqueia.
Estas não são teorias abstratas, mas padrões que observei repetidamente em minha carreira. Com o apoio de minha família, fundei minha primeira startup, que transformou um guia da cidade de Medellín na década de 1990, em meio ao período mais violento da Colômbia. Nosso objetivo sempre se centrou em contribuir para uma transformação cultural: revelar que Medellín era maior que sua fama de narco-violência.
O Paisas .com tornou-se um ponto de encontro para a diáspora paisa, um espaço onde podiam manter vivas suas conexões culturais compartilhando receitas, histórias e notícias sobre o progresso cultural e o entretenimento na cidade. Enquanto os grandes meios de comunicação na Colômbia operavam com uma visão tradicional e estruturas rígidas, nossa estratégia, baseada na cultura como veículo não para vender, mas para fortalecer a identidade, conseguiu conectar de maneira mais autêntica e próxima. Quando a StarMedia finalmente nos adquiriu durante a bolha das pontocom, ficou demonstrado como a internet permitiu que um grupo de jovens com curiosidade e visão conquistasse um lugar na mesa do debate midiático, participando de uma conversa antes reservada aos grandes capitais.
Depois, com a La Cápsula, identificamos como a tecnologia de streaming mudaria a forma como as pessoas consumiam mídia. Desenvolvemos laboratórios para experimentar, onde artistas, criativos, designers e empreendedores podiam brincar com essas novas ferramentas. Sabíamos desde o início que as marcas precisariam de "prossumidores" (produtores e consumidores simultaneamente), o que eventualmente se tornou o marketing de influência. Ao focarmos nas implicações culturais em vez de apenas nos aspectos técnicos, ajudamos as organizações a descobrir como construir comunidades reais em vez de simplesmente ativar novos canais de distribuição.
Essas experiências me levaram à Red Bull (2013-2019), onde eventualmente liderei o departamento de marketing cultural do Brasil, o terceiro maior do mundo em seu tipo. Herdei uma equipe em crise com um incrível centro cultural em São Paulo e fiz uma alteração simples, mas profunda: implementar o basecamp para a gestão de projetos. Esse ajuste, aparentemente técnico, transformou os hábitos de comunicação, responsabilidade e compartilhamento de conhecimento. A operação logo se tornou líder global em inovação, enviando insights sobre tendências culturais para a matriz na Áustria.
A conclusão desses laboratórios é que a transformação é catalisada pela tecnologia, mas até que a liderança mude sua forma de pensar, não estamos transformando em nome da humanidade. Atualizações técnicas sem progresso cultural apenas magnificam as disfunções atuais.
Quando as empresas se aventuram na adoção da iA, elas têm uma escolha crítica a fazer: encará-la como uma implementação técnica ou como uma mudança cultural. A primeira opção proporciona ganhos de eficiência, mas um potencial desperdiçado. A última abre espaço para repensar o trabalho, a criatividade e as relações humanas.
Os especialistas em marketing cultural estão bem preparados para liderar essa mudança porque:
Entendem como o significado simbólico e o valor mudam entre comunidades.
Compreendem padrões de adoção e resistência na cultura.
Conseguem traduzir entre diferentes visões de mundo e sistemas de valores.
São capazes de prever propriedades emergentes de sistemas culturais.
Conectam as capacidades tecnológicas com as necessidades humanas.
A era industrial construiu nossa economia sobre o metal, que por sua própria natureza enferruja e se degrada com o tempo. A economia digital é mais fluida, flexível e volátil. Ela dá aos indivíduos um potencial sem precedentes para se tornarem líderes transformacionais, especialmente com a iA como amplificadora da criatividade humana. Mas esse potencial permanecerá irrealizado a menos que haja uma mudança cultural. A competência técnica sem sensibilidade cultural produz ferramentas de alta tecnologia a serviço de paradigmas de baixa tecnologia.
Líderes de equipes criativas devem ter um cuidado especial com o tipo de pessoa que recrutam para liderar sua revolução de iA. Consultores que veem a iA apenas como uma implementação técnica deixarão passar a oportunidade mais profunda. A questão não é "Como implementamos a iA?", mas sim "Em quem nos tornamos com a iA?".
Indivíduos que veem o marketing como uma força cultural, e não como uma mera transação, são os mais capacitados para ajudar as organizações a enfrentar esse desafio. Eles entendem que a verdadeira mudança ocorre através da criação de significado, da construção de relacionamentos e do fomento de uma cultura, e não pela simples adoção de ferramentas.
Neste momento de mudança profunda, é essencial contar com visionários tecnológicos e otimistas humanos. Requeremos intérpretes culturais que nos guiem em direção a uma transformação genuína, para além da eficiência. Acima de tudo, é crucial ter líderes que reconheçam que, através desta transformação digital, se acelera um renascimento cultural, no qual a tecnologia se volta para o florescimento humano, enquanto a produtividade será o trabalho das máquinas.
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