Houve um tempo em que Drakonia era um continente suspenso entre o céu e o abismo, moldado pelo fogo das primeiras serpentes aladas e pela sabedoria da deusa dragão que vigiava os ciclos da vida. Era uma terra de equilíbrio: os céus preservavam a luz, o submundo reciclava a escuridão, e entre ambos, os mortais desenhavam o presente com a força das virtudes.
Foi nesse tempo que nasceram os reis de Drakonia: Celia, a rainha de olhos de cristal cinzento, e Kael’Tharan, o rei cujo rugido era ouvido até nas montanhas de cinzas. Eles reinaram com justiça e paixão, zelando pelas Sete Virtudes que sustentavam o coração do mundo. Mas quando os rios começaram a se tingir de púrpura, e a água se transformou em veneno, os ventos trouxeram silêncio ao invés de canto. O céu, que outrora pulsava com vitalidade, tornara-se turvo. A água roxa invadira a terra.
Diziam que ela vinha das estrelas. Outros, que brotava das raízes mortas do tempo. Mas os reis sabiam mais. E um dia, sem anunciar ao povo ou ao conselho, partiram em busca da verdade. Nunca mais voltaram.
Drako era jovem quando viu seus pais desaparecerem. Era feito de ouro e fogo, mas no seu olhar morava uma sombra. Cresceu entre os anciãos e os ecos de uma corte vazia, ouvindo lendas partidas ao meio, sonhando com os gritos abafados que a água púrpura enterrava. Quando os sonhos se tornaram visões, ele soube que não poderia mais esperar. Montado em suas próprias asas, desceu ao coração da ilha — e ali começou sua travessia.
Visitou cada canto de Drakonia: os campos onde antes brotavam flores que seguiam o sol, agora transformados em lama úmida e sem cheiro; os templos onde os monges entoavam as virtudes, agora silenciosos, rachados. Na queda d’água dos ancestrais, ouviu pela primeira vez as vozes. Vozes que não vinham do vento, mas de um lugar abaixo de todas as raízes.
Drako era jovem demais para entender, mas velho o suficiente para sentir a ausência como lâmina. O filho dourado — o último da linhagem solar de dragões — cresceu cercado de sombras que tentavam protegê-lo da verdade. Ninguém falava de Kael’Tharan, o rei que rugia justiça. Ninguém mencionava Celia, a rainha que sonhava com jardins nos céus. Mas seus nomes estavam em cada sopro das montanhas, em cada estátua coberta de musgo. Foi ao atingir sua maturidade de fogo que Drako partiu. Não por glória, mas por saudade. Não por vingança, mas por verdade.
A primeira revelação lhe veio não nas bibliotecas de Rose, a dragonesa bibliotecária que lia disparando palavras como projéteis, mas nas águas da primeira nascente corrompida. Quando tocou o líquido púrpura, não sentiu dor — sentiu chamado.
No início, procurava apenas sinais.
Nas quedas d’água da encosta leste, encontrou manchas roxas escorrendo com densidade incomum — e ali ouviu, pela primeira vez, a lenda da Caverna Encharcada. Guiado pela intuição, entrou na escuridão líquida. Ali, a água púrpura era viva: murmurava, pulsava, como se tivesse memória própria. Ao sair, os olhos de Drako não eram mais os mesmos. Ele agora via vestígios da corrupção no ar.
Seguiu então ao norte, para o Anel de Gelo — a região onde as montanhas congeladas guardavam segredos milenares. Lá, a água púrpura não fluía. Ela se solidificava. Em cubos translúcidos e perigosos. Dentro de um deles, viu um osso de dragão. Ao tocá-lo, vislumbrou por um instante um campo de batalha antigo, congelado em tempo e moralidade.
Do frio, partiu para o oposto: as montanhas de lava ao sul. Ali, a água roxa evaporava em forma de gás, movendo-se como espírito — quase como uma serpente viva. Seguindo o rastro, foi conduzido até a fronteira viva entre o deserto e a floresta, uma região de transição onde as areias se transformavam em raízes diante dos olhos. Era ali, entre a mutação e a espera, que o veneno se dissipava e se revelava.
Foi nesse entrelugar que encontrou o Jardim Esquecido — outrora lar de sua mãe. Árvores entrelaçadas por espinhos, flores negras que murmuravam como sombras. Ele entendeu, ao tocar uma delas, que aquele era um aviso. As flores não floresciam à toa: apontavam. E todas apontavam para um mesmo lugar.
Seguindo o caminho das flores, chegou de volta ao início: às águas corrompidas onde sua busca havia começado. Mas agora ele sabia: ali não era o fim, mas a entrada.
No centro do lago púrpura, a luz vermelha vibrava o submundo.
E no reflexo, algo o chamava.
Ele entrou.
Assim chegou ao Submundo. Guiado por Caronte, o dragão barqueiro, atravessou o rio que separa os vivos dos não-mortos. E ali, no sopro gelado do vazio, viu algo impossível: o reflexo de Kael’Tharan. Mas não como o pai — e sim como o demônio que o Submundo moldara. Agora, seu nome era Vortigorn.
Lá, onde o tempo anda para trás e a luz é lembrança, Drako enfrentou o vazio e a verdade. Foi nas paredes úmidas e escuras do Submundo que ele encontrou a primeira resposta: para sair dali, seria preciso morrer. Deixar ir o próprio ego e se jogar nas mãos do destino, com a virtude do dragão completo. Era necessário atravessar o Caminho das Sete Virtudes, não como herdeiro, mas como aprendiz.
E assim se iniciou a verdadeira jornada de Drako.
O Primeiro Portal na Caverna Submersa da Sabedoria, onde foi desafiado a compreender sem ver, a aprender ouvindo os murmúrios de peixes mudos. Ali, encontrou a memória de sua infância — distorcida, frágil — e aprendeu que sabedoria não é o que se guarda, mas o que se escuta no silêncio.
O Segundo Portal era o Anel de Gelo da Força, um campo de batalha onde os ecos de seus ancestrais lutavam entre si, sem fim. Drako não os venceu. Ele os abraçou. A força, aprendeu, era aceitar o próprio limite e não se dobrar diante dele.
No Terceiro Portal, entrou no Templo do Fogo e da Justiça. Chamas envolviam as paredes, e bandeiras queimavam ao vento. Ele viu fantasmas disputando leis e vinganças, e soube que a justiça verdadeira não escolhe lados; mas percebe ambos.
O Quarto Portal era um Deserto que se transformava em Jardim, e ali, ele esperou. E esperou. E esperou. Até que uma flor brotou de seus pés, e o deserto sorriu. Paciência havia sido aprendida.
No Quinto, o levou ao Jardim Negro da Compaixão. As flores mentiam. Tinham olhos. As árvores choravam. Ali, Drako estendeu a mão para quem o atacava. Deixou-se ferir para salvar uma criatura envenenada. E aprendeu: compaixão é ser ferido por escolha, para que o outro não precise sangrar.
No Sexto, retornou ao Submundo — ao centro mais escuro. Ali estava seu pai.
Vortigorn não era mais o rei. Era uma besta monstruosa, corrompida pela água roxa. Com olhos de ódio e voz rachada. Drako não o destruiu. Lembrou-o. Falou seu nome. Recitou sua história. E com isso, seu pai chorou. Desfez-se em fogo e lágrima. Drako saía do Submundo não como prisioneiro, mas como Coração da Coragem.
O Sétimo Portal nos Céus, envolto em nuvens gigantescas, viu a Máquina. Fria. Impiedosa. Alimentava-se das almas recém-criadas para manter as antigas em falsa imortalidade. Ela era o motivo da água púrpura, da dor, do desequilíbrio.
E soube então da última verdade: sua mãe estava ali, como espírito etéreo, suspensa entre o mundo dos vivos e o esquecimento.
E que a deusa dos dragões — Lythariel — havia abandonado o Céu para procurar as Sete Joias da Coroa, pois só com elas o ciclo poderia ser curado.
Aurikon, deus do sol, e amante de Lythariel, esperava por sua amada, apático aos problemas dos céus.
Drako desceu. De novo.
Ao retornar ao vale úmido onde a água roxa corria mais densa, Drako percebeu que ali não havia apenas veneno: havia uma lembrança. A vegetação encharcada escondia uma abertura submersa, velada por musgos e raízes pendentes, como se a própria ilha tentasse esquecer o que ali se escondia.
Atravessando a água gelada, Drako entrou na Caverna Encharcada. Lá dentro, tudo vibrava em silêncio. A rocha viva pulsava nas maos de seu recente amigo. Ao tocá-la, Drako não viu seu reflexo — viu o de sua mãe. Celia sorria, rodeada por crianças-dragões em um jardim de flores negras. Mas ao tentar alcançar a imagem, ela se partiu como vidro.
A joia não estava visível. Porque a sabedoria não se dá: se ouve. Drako fechou os olhos. As paredes da caverna começaram a sussurrar. Palavras em idiomas antigos. Fragmentos de orações. Nomes esquecidos. Ele não compreendia, mas ouvia. O som não exigia entendimento — exigia presença.
Quando abriu os olhos, a água estava calma. No fundo, uma pequena luz azulada tremeluzia. Ele mergulhou.
A Jóia da Sabedoria o esperava no silêncio absoluto. Quando a tocou, ouviu apenas uma frase: "A memória não serve ao passado. Ela serve à escolha."
As montanhas de lava, vistas de cima, lembravam o dorso de uma fera adormecida. Mas na fissura mais profunda, onde até o calor hesitava em entrar, havia uma joia sobre um cetro, sendo reverenciada por adoradores do Olho.Ali, os antigos realizavam rituais de passagem — nem todos sobreviviam.
Drako desceu pelas paredes escaldantes até alcançar a entrada. A caverna estava viva de calor. Gases espessos dançavam como espíritos densos. No centro, um círculo de dragoes entoava palavras antigas, marcando o chão com seus pés.
Xar'thul surgiu das sombras. Um dragão de carne, metal e sofrimento. Um olho mecânico girava em sua cabeça, analisando Drako como se procurasse fraquezas no osso.
"Você veio buscar a joia? Dê primeiro algo seu."
Drako avançou. Mas o fogo não se vencia com força. Era preciso oferecer. Ele retirou um fragmento de sua escama — símbolo de sua linhagem — e o lançou dentro do círculo.
O círculo brilhou. O Olho se acalmou.
"Só quem se fere por escolha entende o valor do sacrifício," disse Xar'thul, antes de se dissolver em calor.
A entrada da caverna da biblioteca estava oculta por cipós e silêncio. Mas ao cruzar o limiar, Drako viu estantes que flutuavam, livros que se organizavam sozinhos, e palavras que se escreviam no ar. Era a caverna de Rose, a guardiã do verbo, aquela que lia disparando palavras como projéteis.
"O que buscas já foi escrito," ela disse, "mas cabe a ti encontrar o que falta."
Drako subiu escadas de papel. Cada livro que tocava revelava memórias: da infância com Celia, do último voo com Kael’Tharan, das batalhas esquecidas. Mas todos os relatos paravam antes do desaparecimento de seus pais.
No centro da sala, perto da Rose, um único livro em suas mãos. Sem título. Sem autor. Selado com uma joia.
Drako o abriu.
As páginas estavam em branco.
Ali, ele escreveu: “Eles partiram. Mas não deixaram vazio.”
A joia se desprendeu do livro. Translúcida, tremendo com a luz da memória.
Em uma encosta da ilha, havia uma gruta aberta por mãos divinas. Era ali que Lythariel, a deusa dos dragões, repousava em harmonia pela joia daquela caverna.
Lá Drako sentiu que não estava só. Ecos de seus próprios desejos o cercavam. Sussurros de poder. Vozes dizendo: "Traga seus pais de volta agora. Pegue a joia. Use-a. Mude tudo."
Mas ele se calou.
Nas mãos da deusa, repousava sua ansiada joia.
A joia do livre-arbítrio não se toma. Se recusa.
E ao recusar o poder imediato, Drako a recebeu em mãos.
No coração das montanhas centrais, ocultando-se como se fosse o próprio ventre do mundo, abria-se a maior de todas as cavernas: a Caverna Esmeralda. Drako adentrou por fendas cobertas de musgo, e à medida que avançava, o solo pulsava sob suas garras, como se respirasse.
Dentro, plantas de folhas translúcidas pendiam do teto. O ar era doce, mas denso — quase alucinógeno. E no centro, sentado sobre uma pedra em forma de flor, estava o guardião: um imenso dragão azul, de olhos fechados e óculos de realidade virtual.
“Você vê flores,” disse ele, “mas elas veem você também.”
A caverna inteira parecia simular o mundo exterior — mas distorcido. Tudo era belo demais, ordenado demais. Um paraíso falso.
Drako, confuso, quase se perdeu.
Mas da virtualidade do guardiao da Caverna Esmeralda, brotou a joia verde, viva e verdadeira.
“Cura não é negar a dor,” disse o dragão azul, retirando os óculos. “É reconhecê-la.”
Ao partir para o Submundo, onde os ossos antigos ainda sussurram, Apep dormia e Caronte esperava seu momento. Lá dentro, viu o passado alternativo: versões suas que desistiram, que dominaram, que se corromperam. Viu Kael’Tharan em mil formas: rei, assassino, mártir.
No centro, a joia. Pulsante. Viva.
Drako a tocou, e seu coraçao se aqueceu com a força do seu próprio medo.
Angelina, a arma dos céus, aguardava a chegada dre Drako na nuvem mais alta. Seu corpo era feito de armadura e luz. Seu olhar, de julgamento e ternura.
“Última joia,” ela disse. “Última chance. O que você deseja?”
Drako não respondeu.
A joia apareceu.
Porque promessa não é desejo gritado. É silêncio que arde.
Com as sete reunidas, a coroa renasceu.
E a harmonia retornou à Draconia.
A Máquina nunca mais funcionou.
O veneno cessou. As águas se tornaram limpas. O céu brilhou. O Submundo silenciou.
Angelina, o anjo dragao, recebendo Drako em sua nuvem, o deu seu maior desejo: seus pais. Não como fantasmas, nem como lendas. Mas em novos corpos. Vivos. Refeitos. Com olhos que ainda lembravam, e mãos que ainda sabiam amar. Junto deles, na caverna do último tesouro, estavam milhares de vozes redimidas, e uma promessa nova, que Drakonia jamais esqueceria — porque alguém se lembraria sempre:
Drako. O último dragao dourado.
O primeiro rei da memória e da imortalidade.
The Philosopher
Draconia - A Lenda