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Eu li alguma vez, em algum lugar, que Jo 11,35 é o menor versículo da Bíblia. Eu não fui atrás para descobrir se é verdade, ou se de repente alguém exagerou e este é apenas o menor versículo do NT, ou dos quatro evangelhos, ou então apenas o menor versículo do Evangelho de João, por exemplo. Não sei quais são as palavras deste versículo no original, mas qualquer conectivo, advérbio ou adjetivo além de duas únicas palavras é dispensável: "Jesus" e "chorou".
Ao longo dos quatro Evangelhos Jesus sempre aparece como um protagonista firme, forte, inabalável, seguro e certo de si mesmo. Até na Paixão, que, aliás, é o único outro episódio onde Jesus chora (embora não fale em choro, e sim em verter lágrimas de sangue na Agonia do Getsêmani), até na paixão, fragilizado pelas surras, as torturas, as injustiças, o sofrimento, até aí Jesus é inabalável (mesmo o seu inevitável sentimento de abandono foi expressado não por um grito de desespero desconectado de Deus, da sua missão e da sua submissão ao Pai, mas por um brado que recolheu a dor de um povo, de todos os povos, de cada pessoa, guardado em um salmo que ainda hoje diz "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?").
Talvez por isto o menor versículo da Bíblia seja o que expressa o momento de maior fragilidade de Jesus. Logo depois ele realizou um sinal, pediu ao Pai que atendeu o seu forte grito chamando Lázaro de volta à vida, e antes disto, demorou-se contra a vontade dos discípulos, então seguiu em frente a despeito do medo deles (expressado por Tomé) e ainda consolou a resignada Marta. Mas deixou-se levar, desta vez, pela comoção - pela morte de Lázaro? Ele sabia que Lázaro estava morto, tanto quanto sabia que dali a pouco voltaria à vida.
É claro que mesmo sabendo disto, ele não deve ter sido indiferente à morte do amigo. Mas não chorou, aparentemente, pela morte. "Jesus chorou" ao ver o choro de Maria e dos outros que estavam com ela.
A dor da morte, inevitável, perde o seu poder destrutivo com fé - não é que a fé diminua a dor, mas mantém viva a esperança da ressurreição. Mas nada, nem a fé, tem o poder para minimizar a força da compaixão, que aparentemente foi o que fez Jesus chorar, não pela voz de um salmo, ou ensinando uma lição (como se dissesse "aprendei com o meu pranto" ou "tomai e comei as minhas lágrimas").
Jesus, o vitorioso, foi vencido apenas em duas oportunidades (pelo que eu me lembro): pela comoção com o pranto de Maria, e na discussão com a mulher cananéia (que praticamente encostou Jesus na parede para ele fazer um milagre ao aceitar "comer as migalhas que caem da mesa"), mas no caso da cananéia, Jesus ainda se mantém "senhor de si", digamos assim, e cede pela força da argumentação da mulher. Já no caso de Jo 11,35, Jesus chorou só porque viu os outros chorando.
Bento XVI deixou escrito na sua encíclica Deus Caritas Est que "O amor apaixonado de Deus pelo seu povo ... é tão grande, que chega a virar Deus contra Si próprio, o seu amor contra a sua justiça." (10). Milan Kundera explicou na Insustentável Leveza do Ser que, nas línguas latinas, a palavra "compaixão" é formada pelas palavras "sofrer com", significando a indulgência de quem se rebaixa ao sofrimento alheio, enquanto que em outras línguas, a palavra é formada não pelo verbo sofrer, mas pelo verbo sentir, passando a ideia de "co-sentir", ou de "sentir com" (como em "copiloto").
No fim das contas, só Jesus pode ter a compaixão conforme a composição latina e se rebaixar ao nível do ser humano, porque fora de nossas fantasias de superioridade não é possível nos rebaixarmos ao nível de um semelhante, porque estamos no mesmo patamar dele mesmo fantasiando alguma superioridade ou inferioridade. Mas não é porque seja o único capaz de se rebaixar, que Jesus também não seja capaz da compaixão conforme a outra composição, "sentir com" - e em todos os casos, sofrendo os nossos sofrimentos ou sentindo os nossos sentimentos, somos a única coisa capaz de fazer Jesus, que é Deus, perder a compostura, não somente a ponto de morrer por nós, o que exige um grande domínio de si para não "deixar o Pai de lado e fugir para morrer em paz" (como aconselhou Raul Seixas numa música), mas também a ponto de deixar-se dominar pela compaixão por nós chorando, não lágrimas de sangue por sua sagrada agonia, mas lágrimas de quem uniu seu coração ao do outro.
Reza a lenda que o nome do Arcanjo Miguel significa "quem como Deus?", uma pergunta que subentende uma afirmação contrária às aspirações de Lúcifer de ser como Deus no sentido da sua grandiosidade e do seu poder. Mas a resposta à pergunta condensada no nome do arcanjo não é, necessariamente, "ninguém": "- Quem como Deus?" talvez possa ser respondida com "- Quem for capaz de se deixar comover e chorar com os outros, como Jesus se comoveu e chorou quando viu a comoção de Maria e dos que estavam com ela."